
Abrindo o livro temos Cartas de mamãe um conto multifacetado que beira o fantástico, não fosse o poder que o autor se atribui ao mudar o rumo da história para algo tão idiossincrático quanto a própria fantasia. Aqui temos um casal de Buenos Aires, mas que mora na França (ponto comum para todos os contos como cenário de cada ação) e que recebe uma carta da mãe do marido. Na carta, além das palavras saudosas, há também a menção do aparecimento de um irmão já falecido, que por sinal namorou a atual esposa. Tomado por uma imparcialidade, ele se questiona se deve ou não mostrá-la a sua esposa. Depois de armado o conflito, Cortázar nos presenteia com um final do qual somos nós os responsáveis por imaginar.
Seguido de Os bons serviços, um conto meigo, porém ambíguo. Aqui há uma abrangência extratextual, onde o conto dialoga com o leitor formando certa cumplicidade. É um dos contos que mais desperta emoções. Madame Francinet é a protagonista, ingênua, que é contratada para fazer trabalhos no mínimo excêntricos. Sua ingenuidade encanta, mas faz com que se aproveitem dela de forma injusta até. É impossível não se senti tocado com madame Francinet.
O terceiro conto, As babas do diabo, talvez seja o mais conhecido do autor pelo fato de ter inspirado o clássico de cinema Blow-up dirigido por Antonioni. Aqui está o conto mais idiossincrático de todos, há uma ambigüidade extrema. O conflito se dar por um fotógrafo que registra uma cena estranha e que com uma conotação sexual, segundo o contexto mental dele próprio. Quando a situação é vista por outra lente, nesse caso o ângulo do leitor e do próprio personagem em seu futuro narrativo é que se ver as possibilidades que a princípio se mostrou única. Eis a interpretação do leitor sendo exigida novamente.
Depois vem aquele que é considerado o divisor de águas na obra de Cortázar, O Perseguidor, que é de longe seu conto mais bem escrito e mais bem construído. Um jornalista crítico de jazz que está a escrever a biografia de seu melhor amigo e também melhor jazzista, pela crítica. Aqui são colocadas ironias, ambiguidades e poética. Um músico que pouco entende até de sua própria música busca uma linguagem real para aquilo que acredita, e questiona os conformismos e convenções sociais, até cair num abismo intransponível de autodestruição, mesmo sabendo que de alguma forma (talvez não a certa) isso está sendo registrado por seu amigo. Eis que surge um Dom Quixote moderno e questionador, que além de tudo faz refletir bastante sobre o mundo. Aqui Cortázar brinca também com os elementos lingüísticos e narrativos, que mesmo presentes em todos os contos, aqui se acentuam e se mostram explícitos ao leitor pelo próprio narrador que ora se confunde entre a primeira e terceira pessoa.
Fechando o leque está aquele que nomeia o livro. As armas secretas mostra um casal que tentar transpor um passado de certo modo sombrio, carregado de lembranças obscuras de um período histórico sôfrego para ambos. Aqui além das emoções e relações humanas são colocados à prova o espírito humano, tornando possível a alma para testá-la como componente do ser humano.
As Armas Secretas (Civilização Brasileira, 192 pág.) é prato cheio para os amantes de contos complexos e que permitem reflexão e discussão. Se Tchekóv brinca com as situações cotidianas, Cortázar as trata com ironias e crítica, nos incitando de outra forma, assim como o contista russo, a questionar os valores sociais dos quais somos adeptos. Eis um papel importante da literatura. Eis um livro excelente ao exercer esse papel. Recomendo.
Texto Original:
Cooltural Blog de Ademar Júnior
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