A literatura hispano-americana, mesmo não sendo a mais conhecida nem a mais influente, possui autores que são verdadeiras jóias raras. Julio Cortázar é um deles. As Armas Secretas (Las Armas Secretas, 1959) foi um marco em sua obra e na literatura na qual está inserido. Assim como Jorge Luis Borges, Cortázar se destaca pela boa escrita da narrativa curta, ou contos. Nesse volume temos cinco contos significativos em seu trabalho e que merecem atenção não apenas dos fãs do autor ou do gênero, mas também de qualquer um que queira experimentar da literatura propriamente dita. Os contos são Cartas de mamãe, Os bons serviços, As babas do diabo, O perseguidor e As armas secretas. Cada conto tem uma particularidade que o torna indispensável na leitura de Cortázar.
Abrindo o livro temos Cartas de mamãe um conto multifacetado que beira o fantástico, não fosse o poder que o autor se atribui ao mudar o rumo da história para algo tão idiossincrático quanto a própria fantasia. Aqui temos um casal de Buenos Aires, mas que mora na França (ponto comum para todos os contos como cenário de cada ação) e que recebe uma carta da mãe do marido. Na carta, além das palavras saudosas, há também a menção do aparecimento de um irmão já falecido, que por sinal namorou a atual esposa. Tomado por uma imparcialidade, ele se questiona se deve ou não mostrá-la a sua esposa. Depois de armado o conflito, Cortázar nos presenteia com um final do qual somos nós os responsáveis por imaginar.
Seguido de Os bons serviços, um conto meigo, porém ambíguo. Aqui há uma abrangência extratextual, onde o conto dialoga com o leitor formando certa cumplicidade. É um dos contos que mais desperta emoções. Madame Francinet é a protagonista, ingênua, que é contratada para fazer trabalhos no mínimo excêntricos. Sua ingenuidade encanta, mas faz com que se aproveitem dela de forma injusta até. É impossível não se senti tocado com madame Francinet.
O terceiro conto, As babas do diabo, talvez seja o mais conhecido do autor pelo fato de ter inspirado o clássico de cinema Blow-up dirigido por Antonioni. Aqui está o conto mais idiossincrático de todos, há uma ambigüidade extrema. O conflito se dar por um fotógrafo que registra uma cena estranha e que com uma conotação sexual, segundo o contexto mental dele próprio. Quando a situação é vista por outra lente, nesse caso o ângulo do leitor e do próprio personagem em seu futuro narrativo é que se ver as possibilidades que a princípio se mostrou única. Eis a interpretação do leitor sendo exigida novamente.
Depois vem aquele que é considerado o divisor de águas na obra de Cortázar, O Perseguidor, que é de longe seu conto mais bem escrito e mais bem construído. Um jornalista crítico de jazz que está a escrever a biografia de seu melhor amigo e também melhor jazzista, pela crítica. Aqui são colocadas ironias, ambiguidades e poética. Um músico que pouco entende até de sua própria música busca uma linguagem real para aquilo que acredita, e questiona os conformismos e convenções sociais, até cair num abismo intransponível de autodestruição, mesmo sabendo que de alguma forma (talvez não a certa) isso está sendo registrado por seu amigo. Eis que surge um Dom Quixote moderno e questionador, que além de tudo faz refletir bastante sobre o mundo. Aqui Cortázar brinca também com os elementos lingüísticos e narrativos, que mesmo presentes em todos os contos, aqui se acentuam e se mostram explícitos ao leitor pelo próprio narrador que ora se confunde entre a primeira e terceira pessoa.
Fechando o leque está aquele que nomeia o livro. As armas secretas mostra um casal que tentar transpor um passado de certo modo sombrio, carregado de lembranças obscuras de um período histórico sôfrego para ambos. Aqui além das emoções e relações humanas são colocados à prova o espírito humano, tornando possível a alma para testá-la como componente do ser humano.
As Armas Secretas (Civilização Brasileira, 192 pág.) é prato cheio para os amantes de contos complexos e que permitem reflexão e discussão. Se Tchekóv brinca com as situações cotidianas, Cortázar as trata com ironias e crítica, nos incitando de outra forma, assim como o contista russo, a questionar os valores sociais dos quais somos adeptos. Eis um papel importante da literatura. Eis um livro excelente ao exercer esse papel. Recomendo.
Texto Original:
Cooltural Blog de Ademar Júnior
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